O Inusitado Encontro de Olegário e Adamastor - Parte I

sexta-feira, 20 de maio de 2011



    O Sol estava cor de laranja e derramava o sumo, o suco, pra nos saciar. Despojando luminosidade, despejando a tristeza, inquilina, de nossos corações.
     Foi na feira de quinta que o peixeiro gritou: "'Tá acabando, fregueza. Vem depressa conferir!". Odete foi, pediu pra embrulhar, levou. Na sacola ecologicamente correta do mercado em que costumava ir, a tilápia do ululante, meio queijo meia-cura, uns legumes, verduras e frutas quaisquer.
     - "Dobrar a esquina é transformá-la numa reta!" - disse-lhe o guardador de carros, enquanto ela dobrava a esquina - porque Odete não estava de carro, o narrador é teimoso e não tem tempo para considerações acerca da geometria. A não ser a da incidência dos raios solares sobre certas porções da superfície, que, neste caso, ainda era à pino.
     Há gente que reclama do Sol no verão e da ausência dele - ou da ausência de uma maior força de vontade sua - no inverno. Mas, como diz um samba: "Na vida coisa mais feia...". Fato é que a maioria dos seres vivos precisa de uma tal vitamina que não importa a quantas feiras Odete vá, jamais encontrará uma barraca com alguém berrando: "'Tá acabando a vitamina D, fregueza. Vem depressa conferir!".
    Existem exceções, evidentemente. Exemplos são formas de vida do oceano profundo e os cogumelos, que, por isso, a princípio eram produzidos nos esgotos de Paris. Trè chic e prático! Numa mesma viagem realiza-se a coleta dos champignons e dos escargots.
     Outra exceção era Adamastor.
   Mas isso é coisa para ser discutida mais adiante... 

Ainda Inominado - I Prefácio do Autor


     Muitas outras vezes sentei-me à frente de um computador com o objetivo de contar a história que adiante narrarei. No entanto, ponderar as consequências de tais fatos sempre fez com que eu desistisse dessa tarefa. As implicações na vida de pessoas que estimo figuraram, no mais das vezes, como o empecilho diante do qual não pude cerrar os olhos. De minha parte, pouco importa ser ridicularizado ou mesmo internado em alguma clínica de recuperação para pessoas com deficiência mental. Conheço a verdade de minhas memórias, de meus pesadelos e de minhas cicatrizes.
     Àqueles que quero bem, entretanto, não desejo o escárnio que por vezes recebi em retribuição à confidência dos fantasmas que rondam meus pensamentos. Por isso meu silêncio perdurou ao longo dos útimos três anos. Por isso duraria a vida inteira, não fosse a mão pesada do destino, travestida em fatalidade, alterar derradeiramente o sentido de minha existência. Quantas lágrimas hei derramado... quantas ainda derramarei. A esta altura, resta-me apenas uma tarefa desejável: fazer com que alguém saiba o que houve comigo. 
      A execução deste intento não foi levada à cabo antes por que eu ainda não havia encontrado a alternativa que me permitisse preservar aqueles que desejo preservar e expor aqueles que devem ser expostos. Jamais levei em conta a hipótese de apresentar a minha história como uma obra de ficcção. Se o fizesse, é provável que a sanidade que me esforço por manter finalmente me abandonasse. Não direi que o sangue que jorrou de meu corpo pertencia a outrem. Não direi que outra pessoa tenha sido incumbida da tarefa que me coube. Afinal, é meu sono que se interrompe, entremeado por gritos e sussurros.
    Comecei a escrever estas palavras quando descobri a melhor maneira de fazer com que pelo menos uma pessoa lesse minha história como uma obra de não-ficção. Como descreverei a seguir, fui estagiário da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina, cidade situada no norte do estado do Paraná. Essa ocupação me permitiu perceber que alguns livros podem passar meses sem que sequer um estudante venha a conhecer a sua textura. Em se tratando da apreensão de seu conteúdo, a estimativa do período de ostracismo aumenta consideravelmente. Os bibliotecários e estagiários também não perceberiam o livro, desde que ele não necessitasse de restauração, estivesse devidamente etiquetado, mas não incluso no sistema de busca online da biblioteca.
   Por fim, para postergar ainda mais a descoberta de minha narração, redigi-a em latim. Assim, evitei que um simples passar de olhos por estas linhas fosse suficiente para a percepção do assunto ao qual se referem. A colocação do Prefácio no final do livro também teve por objetivo evitar que um contato fugaz de um leitor desatento trouxesse à luz a minha narrativa. Tais providências buscaram elevar ao máximo o número de coincidências necessárias para que alguém viesse a desvendar o real significado da justaposição destas letras.
     E esse alguém é você, que agora se debruça sobre as folhas que lapidei. Jamais conhecerei a tua identidade. Se és homem ou mulher, belo(a) ou feio(a), gentil ou rude. Sei, desde já, que se a ti foi reservada a ocasião de conhecer-me através deste livro, é por que assim deveria ser. Sei, igualmente, que dependerá de minhas qualidades narrativas o prazer desta leitura. Não posso garantir-lhe o deleite que certamente encontarias em obras ficcionais ou mesmo biográficas e/ou históricas escritas por gente muito mais talentosa do que eu. Posso garantir-lhe, única e tão-somente, que durante a leitura destas páginas estarás diante de uma verdade muitas vezes encantadora ao ponto de ser confundida com uma fábula. Mas, creia-me: é tudo tão real quanto os dedos que usarás para virar esta página...
       Agora.