Epifanias de Um Escritor de Ficcção Mediúnico e Esquizofrênico ou A Essência da Vida - segundo Paulo Antônio

domingo, 1 de abril de 2012


 

Começou o esboço sobre a história que desejava escrever: pensou em personagens que fariam sentido para aquela trama, pensou se o narrador deveria ser em 1ª ou 3ª pessoa e pensou, sobretudo, na cena em torno da qual giraria toda a história, o clímax. Metido a filósofo que era, concluiu que o personagem principal deveria ser um homem em busca de verdades, que encontraria, justamente no clímax, um sábio que lhe diria a essência da vida.
Mas, não queria usar o mesmo recurso do Monty Phyton, em A Busca do Santo Graal, em que o segredo desesperador não é informado a quem assiste ao filme, é transmitido apenas de personagem a personagem. Seu objetivo, metido a filósofo que era, apontava para o compartilhamento com o mundo, através da escrita, de algo que ele considerasse uma verdade essencial. E estas palavras viriam pela boca do sábio, na história.
Buscando em seu coração, sobretudo, alguma verdade sobre a qual jamais arredaria o pé, encontrou apenas o frustrante paradoxo: A verdade é que não existem verdades. Inquiriu cada esfera de sua vida: a moral, a familiar, a amorosa-sensual... E percebeu que não encontrava alguma ideia que sustentaria independentemente de qualquer coisa.
Ora, a história estava bem desenvolvida em sua cabeça. Se ele tivesse começado a escrever, é possível que a trama o levasse, enquanto narrador, para caminhos diferentes daqueles inicialmente pensados. Porém, estancou. Achou que nem valia a pena começar a escrever se não tinha uma solução para o ponto mais importante da história.
E ficou ali pensando...
Até que ouviu uma voz que não vinha de fora, estava dentro dele: - “Um trato, senhor. Eu quero lhe propor um trato”. Concluiu: “Ah... sim, demorou, mas finalmente eu fui pego pela insanidade!” Contudo, não tardou em perceber que esta atitude era inútil diante do problema de ter uma voz repetindo, insistentemente: - “Um trato, senhor. Eu quero lhe propor um trato”. Mesmo enquanto percorria o fluxo de pensamento que o levou a percepção de que sua atitude era desconexa em função do real problema, seu Problema continuava a anunciar que proporia um trato.
Por fim, decidiu tomar um remédio para dormir e se livrar de uma vez por todas daquela voz, torcendo para que no dia seguinte ela simplesmente deixasse de existir. Quando chegou o efeito, pode ouvir: - “Há outro caminho. Eu tenho um trat”...
Entretanto, dificilmente os nossos cálculos sobre o futuro acertam o alvo. Ao tomar o remédio, e interferir quimicamente em seu sono, nada mais fazia do que responder à voz. Assim foi. E se tivesse lido estas linhas enquanto as escrevia, é provável que exclamasse: “Elementar, meu caro Watson.” Assim não foi. O fato é que ao se recuperar da pane mental percebeu que estava em um lugar daqueles que só imaginamos em sonhos, mas que diferentemente de outras ocasiões, não parecia sonho.
Neste recanto onírico, alguém se aproximou dele e, estendendo a mão, exclamou: - “Meus parabéns. Por meios distintos – e muito mais árduos, diga-se de passagem – você encontrou o outro caminho”. Divisou um homem com larga barba branca, vestes extremamente simples, sandálias e um brilho intenso no olhar. Nada mais era do que o seu estereótipo de um sábio.
Ao perceber o que se passava, o sábio, sorrindo, convidou: - “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. É de Clarice Lispector. Você conhecia?” A mão ainda estendida. Não se sabe de onde, mas lhe veio uma vontade de aceitar o jogo, ao invés de voltar àquele que jogava anteriormente. Apertou a mão do sábio, que se aproximou, colocando agora a mão sobre seu ombro.
- Como eu ia dizendo, eu tenho um trato a lhe propor. Ouça atentamente: Antes de qualquer coisa, eu quero me desculpar, tive de interferir porque percebia que, mais uma vez, você ia se perder num mar de reflexões. E foi isso o que você tentou o tempo todo, inclusive ao tomar o remédio que me trouxe até aqui. Pois bem, dito isto, vamos aos termos do trato. Tenho certeza de que você os compreenderá: Enquanto você permanecer no mesmo lugar em que está agora, eu estarei aprisionado a sua existência. Sem possibilidades de seguir o meu caminho, certo?
- Espere! – interrompeu – Eu não sei se compreendo exatamente o que você está dizendo...
- Ora, eu pensei que você tivesse ouvido quando eu disse aquela famosa frase de Clarice Lispector?! Aquilo não foi uma entrada performática. A essência do que estamos fazendo aqui está expressa nessa frase. De qualquer forma, vou simplificar: Enquanto você não trilhar qualquer um dos caminhos que a vida lhe oferece, permanecendo estagnado, continuarei preso a sua necessidade de diálogo interior, pois nada mais sou do que uma projeção, em sua mente, assim como você também o é, para a minha.
- Eu não verei o meu sábio ideal quebrando bruscamente a ideia lógica de que um sábio deve dizer coisas sábias, vou? Afinal, eu rejeito a noção de que seríamos todos projeções uns dos outros e vivêssemos, todos, um sonho ao mesmo tempo individual e coletivo.
- Diga: se você rejeita esta noção, por que não chegou à conclusão, numa tarefa que se propôs, há pouco tempo, de que uma verdade que você sustentaria a qualquer custo pode ser expressa nos seguintes termos: “Não somos todos projeções uns das mentes dos outros e não vivemos todos um sonho ao mesmo tempo individual e coletivo!” Ponto final. Se você acreditasse nisto, jamais estaríamos tendo esta conversa.
- Acontece que esta forma de negativa não pode ser provada, porque se refere a esferas que não se compreende.
O sábio, antevendo as dificuldades que viriam pela frente, com o indicador apoiado no nariz, o queixo apoiado no polegar e os outros dedos todos cobrindo a boca – numa livre adaptação do Pensador – começou:
- Percebo que a lógica ainda é o seu grilhão. Tenho de me desculpar de novo, pois vou ter de interferir duplamente neste processo. Entretanto, não o farei sem antes pedir o seu consentimento. As experiências não podem ser transferidas de uma pessoa para a outra, como se colocássemos um pen drive em um computador e tivéssemos a liberdade de mover o que estava no primeiro para o segundo, e vice-versa. Com o aprendizado é diferente, porque existe um componente intransferível, uma parcela de si que agirá e reagirá sobre o fenômeno, transformando-o em algo peculiar. O máximo que se pode fazer é procurar, através de categorias, a igualação do não igual.                         
Ao sustentar estas palavras, sustentava também, em uma das mãos, uma folha de manjericão, e na outra, uma de amoreira. Tão diferentes, mas folhas, ambas. Sorriu um misto de satisfação e ternura, pois aquela imagem havia, de certa forma, desarmado o seu contrincante intelectual. Observando a situação favorável, apressou-se, tranquilamente:
- Mas contigo as coisas são mais fáceis. Afinal, temos explicações clínicas, metafísicas e literárias justificando o que vou fazer. No primeiro caso, dirão que você descuidou das vozes que existem dentro de si; no segundo, que tal como Chico Xavier, incorporou um espírito iluminado – modéstia à parte. Por último, poder-se-ia dizer que você compartilha da excentricidade de Fernando Pessoa, e que há muitos outros eus-líricos usando as suas mãos para expor a sua perspectiva do mundo... Enfim, com escritores – e metidos a filósofos ainda mais – é sempre mais fácil tomar a frente. O mais interessante é que eu não elimino o essencial: o seu livre-arbítrio. Pois, isto não é um sonho? Amanhã você pode escolher uma das racionalidades de negação das quais eu já falei e simplesmente decidir: “Não passou de um sonho!”
Um pouco cansado daquilo tudo, de tanta retórica à revelia de sua cápsula de antidepressivo sedativo, resignou-se, com um suspiro vencido: - “Que seja! O quanto antes eu fizer o que este homem deseja, mais cedo farei o que eu desejo.” Não suspeitou da sabedoria destas palavras...
- Tudo bem! ‘Tome a frente’...
E o sábio secundou, inclinando-se:
- Obrigado por me libertar...    
E pensou que aquilo que chamamos, porventura, de maturidade, talvez não seja mais do que o acúmulo da experiência de situações de conflito, isto é, circunstâncias específicas do relacionamento entre indivíduo e mundo que nos fizeram questionar profundamente a nossa própria existência – nos levaram a verdades pessoais, verdades existenciais. Então após algumas batalhas internas, manipuladas pelo coração e pela mente, chegamos a uma verdade existencial. É provável que pensemos: “Tudo bem! Determinada opinião pode ser a verdade de outra pessoa.”. Mas, depois das experiências que vivenciamos, encontramo-nos incapazes de abandonar nossa própria verdade.
Daí a importância de não se acomodar. A necessidade de correr riscos, não no mundo, mas com ele. A grande virtude da coragem tem a sua estrutura baseada justamente nisso: uma pessoa mais corajosa será – ainda que viva menos – uma pessoa mais feliz do que aquela que recusa situações que a levariam ao aprendizado, a lições de vida. Logo, a existência desta segunda pessoa está mais retraída, erguendo muros em volta de si, lenta e tediosamente enfraquecendo.
É importante agir com o mundo, e não apenas reagir a ele.
“A utopia serve para caminhar!” – É de Eduardo Galeano. Você conhecia?
Ao se levantar, no dia seguinte, tomado de uma ressaca multigenética, chegou o mais rápido que pôde à tela do computador. Nela encontrou justamente estas palavras, esta história surreal. E o mesmo trecho produzido no agora pretérito e lido no agora do porvir, fez com que ele sorrisse, considerando boa escolha ter aceitado aquele trato. Novamente, tudo era como antes. Apenas a sua voz dialogava consigo mesma.
Decidiu examinar mais uma vez as supostas palavras supostamente sábias do suposto sábio, aquelas que dariam o desenlace ao clímax da história que pretendia escrever. Compreendeu, então, que aquilo não era uma verdade, mas sua verdade. A lição que precisava aprender, naquele exato momento, não era outra, senão a expressa naquelas linhas. Fosse sua criação este modo de pensar, do sábio em sua possibilidade esquizofrênica ou de Paulo Antônio, havia verdade ali.
Não se sabe se todos estes personagens, ou nenhum deles, o caso é que veio à tona, dos cantos mais remotos de sua memória, uma canção que seu pai costumava interpretar entusiasticamente nos banhos:

“Por que não viver,
Não viver esse mundo?
Por que não viver,
Se não há outro mundo?”

- É Novos Baianos. Você conhecia?

O Inusitado Encontro de Olegário e Adamastor - Parte I

sexta-feira, 20 de maio de 2011



    O Sol estava cor de laranja e derramava o sumo, o suco, pra nos saciar. Despojando luminosidade, despejando a tristeza, inquilina, de nossos corações.
     Foi na feira de quinta que o peixeiro gritou: "'Tá acabando, fregueza. Vem depressa conferir!". Odete foi, pediu pra embrulhar, levou. Na sacola ecologicamente correta do mercado em que costumava ir, a tilápia do ululante, meio queijo meia-cura, uns legumes, verduras e frutas quaisquer.
     - "Dobrar a esquina é transformá-la numa reta!" - disse-lhe o guardador de carros, enquanto ela dobrava a esquina - porque Odete não estava de carro, o narrador é teimoso e não tem tempo para considerações acerca da geometria. A não ser a da incidência dos raios solares sobre certas porções da superfície, que, neste caso, ainda era à pino.
     Há gente que reclama do Sol no verão e da ausência dele - ou da ausência de uma maior força de vontade sua - no inverno. Mas, como diz um samba: "Na vida coisa mais feia...". Fato é que a maioria dos seres vivos precisa de uma tal vitamina que não importa a quantas feiras Odete vá, jamais encontrará uma barraca com alguém berrando: "'Tá acabando a vitamina D, fregueza. Vem depressa conferir!".
    Existem exceções, evidentemente. Exemplos são formas de vida do oceano profundo e os cogumelos, que, por isso, a princípio eram produzidos nos esgotos de Paris. Trè chic e prático! Numa mesma viagem realiza-se a coleta dos champignons e dos escargots.
     Outra exceção era Adamastor.
   Mas isso é coisa para ser discutida mais adiante... 

Ainda Inominado - I Prefácio do Autor


     Muitas outras vezes sentei-me à frente de um computador com o objetivo de contar a história que adiante narrarei. No entanto, ponderar as consequências de tais fatos sempre fez com que eu desistisse dessa tarefa. As implicações na vida de pessoas que estimo figuraram, no mais das vezes, como o empecilho diante do qual não pude cerrar os olhos. De minha parte, pouco importa ser ridicularizado ou mesmo internado em alguma clínica de recuperação para pessoas com deficiência mental. Conheço a verdade de minhas memórias, de meus pesadelos e de minhas cicatrizes.
     Àqueles que quero bem, entretanto, não desejo o escárnio que por vezes recebi em retribuição à confidência dos fantasmas que rondam meus pensamentos. Por isso meu silêncio perdurou ao longo dos útimos três anos. Por isso duraria a vida inteira, não fosse a mão pesada do destino, travestida em fatalidade, alterar derradeiramente o sentido de minha existência. Quantas lágrimas hei derramado... quantas ainda derramarei. A esta altura, resta-me apenas uma tarefa desejável: fazer com que alguém saiba o que houve comigo. 
      A execução deste intento não foi levada à cabo antes por que eu ainda não havia encontrado a alternativa que me permitisse preservar aqueles que desejo preservar e expor aqueles que devem ser expostos. Jamais levei em conta a hipótese de apresentar a minha história como uma obra de ficcção. Se o fizesse, é provável que a sanidade que me esforço por manter finalmente me abandonasse. Não direi que o sangue que jorrou de meu corpo pertencia a outrem. Não direi que outra pessoa tenha sido incumbida da tarefa que me coube. Afinal, é meu sono que se interrompe, entremeado por gritos e sussurros.
    Comecei a escrever estas palavras quando descobri a melhor maneira de fazer com que pelo menos uma pessoa lesse minha história como uma obra de não-ficção. Como descreverei a seguir, fui estagiário da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina, cidade situada no norte do estado do Paraná. Essa ocupação me permitiu perceber que alguns livros podem passar meses sem que sequer um estudante venha a conhecer a sua textura. Em se tratando da apreensão de seu conteúdo, a estimativa do período de ostracismo aumenta consideravelmente. Os bibliotecários e estagiários também não perceberiam o livro, desde que ele não necessitasse de restauração, estivesse devidamente etiquetado, mas não incluso no sistema de busca online da biblioteca.
   Por fim, para postergar ainda mais a descoberta de minha narração, redigi-a em latim. Assim, evitei que um simples passar de olhos por estas linhas fosse suficiente para a percepção do assunto ao qual se referem. A colocação do Prefácio no final do livro também teve por objetivo evitar que um contato fugaz de um leitor desatento trouxesse à luz a minha narrativa. Tais providências buscaram elevar ao máximo o número de coincidências necessárias para que alguém viesse a desvendar o real significado da justaposição destas letras.
     E esse alguém é você, que agora se debruça sobre as folhas que lapidei. Jamais conhecerei a tua identidade. Se és homem ou mulher, belo(a) ou feio(a), gentil ou rude. Sei, desde já, que se a ti foi reservada a ocasião de conhecer-me através deste livro, é por que assim deveria ser. Sei, igualmente, que dependerá de minhas qualidades narrativas o prazer desta leitura. Não posso garantir-lhe o deleite que certamente encontarias em obras ficcionais ou mesmo biográficas e/ou históricas escritas por gente muito mais talentosa do que eu. Posso garantir-lhe, única e tão-somente, que durante a leitura destas páginas estarás diante de uma verdade muitas vezes encantadora ao ponto de ser confundida com uma fábula. Mas, creia-me: é tudo tão real quanto os dedos que usarás para virar esta página...
       Agora.